Meditação para a 6a feira santa
* Por Marcelo Barros
Neste dia em que celebramos a Páscoa da Cruz, é uma graça divina mas também uma responsabilidade escutar a boa nova contida na narrativa da paixão de Jesus segundo João. (Jo 18 e 19). Ela se diferencia das outras versões da paixão. Enquanto os outros sublinham os sofrimentos de Jesus, o quarto evangelho prefere mostrar como, mesmo no meio de todo sofrimento, Jesus tem a iniciativa de ir dirigindo os acontecimentos. Enquanto Marcos, Mateus e Lucas conta que Jesus passou por um momento de agonia e angústia no Horto das Oliveiras, João conta que, no jardim de Getsêmani, é o próprio Jesus, que vai ao encontro dos soldados e toma a iniciativa de perguntar: A quem procurais? E quando os soldados dizem: Jesus de Nazaré, Jesus responde Sou eu, a mesma palavra que define o nome divino no Êxodo. Ao ouvir essa palavra, são os soldados que caem e Jesus que fica de pé. Do mesmo modo, é Jesus que se proclama a Pilatos como sendo testemunha da verdade do reino do Pai. De acordo com esse evangelho (e é o único dos quatro evangelhos que diz isso), foi ao inclinar a cabeça para expirar que Jesus nos entregou o Espírito.
Que sentido tem para nós hoje receber em nossas vidas esse evangelho com essa visão aparentemente pouco histórica e mais teológica da paixão de Jesus que o quarto evangelho chama de “exaltação do Filho do Homem”?
Quando o relato desse evangelho nos fala da cruz vitoriosa de Jesus é para nos ajudar a ver que o amor e a solidariedade podem tornar vitoriosas as lutas dos pequenos por justiça e por paz. Na cruz Jesus nos entrega o seu espírito que é o Espírito Santo para nos animar nessa luta para que venha a esse mundo o reino de Deus.
Adorar o Cristo na cruz é proclamar que Jesus morreu na cruz para que todos possam viver e nunca mais ninguém morrer na cruz. Jesus morreu na cruz para que nós todos lutemos para descer da cruz os oprimidos e perseguidos que até hoje continuam crucificados. Nós celebramos a crucifixão para descrucificaros crucificados de hoje.
A cruz de Jesus é esse sofrimento assumido por missão, por amor e solidariedade a todos os seres humanos, especialmente aos mais pobres. Na carta aos filipenses, o apóstolo Paulo afirma que há cristãos que se comportam como “inimigos da Cruz” (Fl 3, 18). No contexto daquela comunidade, parece que se tratava de irmãos que reduziam a vida de fé à observância da lei judaica e aos ritos religiosos e preceitos legais (Paulo chega a dizer que o deus deles é o ventre, no sentido de que eles só se preocupam com as normas alimentares judaicas – alimento kosher, etc). Atualmente, penso que temos cristãos e mesmo ministros e pastores que se comportam como inimigos da cruz de Jesus. São os que reduzem a cruz a um sacrifício religioso e não testemunham a força da Cruz como expressão do amor divino por todas as vítimas do mundo econômico e político de hoje.
Em El Salvador, o bispo São Oscar Romero celebrava a paixão de Jesus contemplando a paixão dos pobres no mundo atual. Não para dizer: são santos porque estão na cruz e assim depois de mortos vão para o céu.Não. Ele apontava que o povo estava crucificado e que a obrigação de quem tem fé é fazer tudo, o possível e o impossível para tirá-los da cruz. Por isso, ele, Romero, também foi martirizado como Jesus e agora o papa Francisco o canonizou. Pela mesma causa, aqui no Recife, em 1969, há 50 anos, o padre Antônio Henrique foi morto pelos agentes da Ditadura Militar e Dom Helder Camara foi perseguido e marginalizado durante grande parte de sua vida.
De fato, continuamos a viver em um mundo no qual imensa parte da humanidade está sendo crucificada pelo poder econômico que domina o mundo e beneficia uma minoria de menos de 5% da humanidade. Por isso, mais de um bilhão de pessoas no mundo passam fome, mais um tanto sofre carência de água potável, milhões de migrantes que não são reconhecidos como pessoas humanas. E a própria Terra, nossa casa comum, como diz o papa Francisco, está sendo crucificada e ferida pela ambição humana.
Apesar de todas as dificuldades e dos fracassos que nos sobrevêm diariamente, a nossa fé nos pede que levantemos a cabeça, renovemos a esperança e possamos descobrir a vitória pascal de Jesus ocorrendo em meio às nossas lutas interiores e morais, assim como nas lutas sociais por políticas públicas de qualidade que beneficiem a todo o povo. É a Campanha da Fraternidade desse ano. É a tradução da vitória da cruz.
O evangelho de João revela que, mesmo na Cruz, Jesus se preocupa com sua mãe ali chorando ao pé da cruz e com o discípulo amado que representa todos nós, discípulos e discípulas. E assim como Lucas revela Jesus perdoando os seus algozes e inimigos, João nos mostra Jesus nos dando o seu Espírito mesmo quando teria motivos de se sentir abandonado e meio traído pelos próprios discípulos. Essa atitude de amor não violento e paciente é o que ele pede de nós na nossa militância. Nós aprendemos desse relato da paixão que o que Deus nos pede hoje é rever e corrigir nossas atitudes de intransigência e intolerância que não nos tornam radicalmente diferentes dos nossos adversários. Quando visitei o presidente Lula na prisão, escutei dele a preocupação: “Eu quero viver a indignação que é justa diante da injustiça, mas sem ódio nem amargura no coração”. E eu lhe respondi: “É por isso que você resiste sem entrar em depressão”.
Em seu livro Jesus Libertador, o teólogo Jon Sobrino, traduz o pensamento do mártir Monsenhor Romero em El Salvador e escreve: “Toda violência, mesmo a que pode chegar a ser legítima, tem um potencial desumanizante. A violência desata uma lógica interna que termina destruindo mesmo quem a exerce. (...) Mesmo se, como última reação de defesa e para impedir um mal pior, a violência possa ser compreensível, como regra geral e método de vida e de ação, é preciso não ceder e rejeitar qualquer ato, gesto, palavra que abra a porta à violência, seja física, seja psicológica, seja simbólica. Só quando aderimos à utopia da paz e começamos a vivê-la cotidianamente no nosso modo de ser e de viver, estamos do lado de Jesus e vivendo como discípulos e discípulos dele” (Cf. Sobrino, 1992, p.316).
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