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segunda-feira, 16 de março de 2020

Ubuntu, a conversão ecológica da Casa Comum



     Já ouvimos dizer sobre um princípio da filosofia africana chamada a ética do Ubuntu[1]. A história evidencia a importância de uma decisão coletiva, histórica e cultura que é articulada no respeito e cuidado de uns pelos outros. Essa ideia explicita a nossa condição humana e com a natureza numa relação mútua de pertença e consciência em tudo à nossa volta, através de nosso comportamento pelo vínculo sólido que nos une à casa comum. “Ubuntu” é a nossa essência: “Eu sou porque nós somos”. Em tudo: uma flor, um rio, um lugar, um ser, uma oração e/ou uma missão. É urgente enfatizar “uma paixão pelo cuidado do mundo, uma mística que nos anima com uma moção interior que impele, motiva e encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária”(n.216). 

     A Casa comum é bem próxima de cada um/uma de nós e nela está a partilha de nossa existência, o lugar de nossa missão, especialmente em compromisso e opção preferencial aos mais pobres e marginalizados. Com a Encíclica Laudato Si - sobre o cuidado da casa comum, recorda-se o lugar da contemplação, ação divina de Deus por um caminho de harmonia e gratidão com a criação. Valorizamos a nossa espiritualidade e comunhão entre todos os seres. “Tudo está interligado como se fôssemos um na casa comum”[2], os seres do universo e da Terra, também nós, os seres humanos. Com efeito, nós “não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres” (nº 49). No espaço de diálogo e responsabilidade sobre a natureza em dimensão eclesial, político, social, cultural “é preciso revigorar a consciência de que somos uma única família humana. Não há fronteiras nem barreiras políticas ou sociais que permitam isolar-nos e, por isso mesmo, também não há espaço para a globalização da indiferença” (nº 53). Nisso, compreendemos as diferentes situações e conversões, individuais e coletivas, que afetam a nossa vida e nos remetem as alegrias e esperanças[3] em laços de unidade e corresponsabilidade na conversão integral. 

     Toda iniciativa de cuidado à vida deve ser valorizada e incentivada. O testemunho missionário de Luiza Helena, postulante da CRSD, fala do engajamento no Movimento Juvenil Dominicano – MJD: “Entre os dias 12 e 13 de outubro de 2019 participei do encontro regional do Movimento Juvenil Dominicano. Nós, como jovens cristãos, atentos e conscientes da nossa responsabilidade diante do apelo por uma ecologia integral, sabemos e podemos realizar simples mudanças no nosso dia a dia. Com isso, nós nos comprometemos a falar mais sobre o assunto com outros jovens, a evitar os alimentos ultra processados e valorizar mais os alimentos naturais, oferecidos pela própria natureza. Pois acreditamos que todos os nossos atos feitos em unidade seja ele grande ou pequeno, fazem a diferença”. 

     A participação nos trabalhos missionários dos movimentos e pastorais sociais é nosso apelo ao compromisso de escuta, articulação e mudanças. Vivemos o mundo do descartável e nele, também o ser humano é convertido em lixo, são os seres invisíveis numa sociedade capitalista. Todos os dias nós nos deparamos com as situações de violência às mulheres, às pessoas em situação de rua, aos trabalhadores da terra. Há ausência de políticas humanas e sociais havendo o descaso à educação, o extermínio de jovens nas ruas e favelas, o trabalho e exploração infantil. Exemplos de vulnerabilidade social, cuja raiz está num sistema perverso de monopólio e de mentalidade excludente. O desejo da terra sem males pede a nossa colaboração pela escuta, articulação e mudanças desse cenário de morte e desprezo pela vida. Sabemos da urgência de nos doar e nos arriscar a serviço da vida, contra a ganância e centralização de poder e perda de direitos. “Toda sociedade e nela especialmente o Estado tem a obrigação de defender e promover o bem comum”. (Encíclica Laudato Si P.158). Assumimos a missão de cuidado e ternura ao compartilhar a nossa humanidade na dor do outro, na experiência de seus dilemas, por vezes incrédulos de fé e quase sem nada! Não assumir essa realidade é banalizar e tornar arbitrário o Evangelho que pregamos (Atos 4,19). 

     A Igreja do Brasil com sua profecia vem alertando os cristãos e, de modo especial, confia à Vida Religiosa Consagrada, que se encontra muito perto do povo, numa missão especifica de ser presença e com sua criatividade ajudar o povo a criar mecanismo que possa defender a vida em todas as suas instâncias. Em nossa missão dominicana junto com a Fraternidade dos leigos, gestos simples e cotidianos tornam-se visíveis como compromissos ao bem comum - Escovar os dentes com a torneira fechada e não usar copos descartáveis. Não é fácil aprimorar a educação de consciência e práticas já exercidas. Cada um/a se sente interpelado a modificar hábitos e costumes numa nova relação de cuidado e preservação da natureza e do outro. Sabemos que é necessário um diálogo aberto e respeitoso em nós mesmos, e isso nos permite compreender outro modo de viver e acolher diferentes situações de integração em processo de conversão, pessoal e coletiva. 

     Outro exemplo ao engajamento da conversão integral é a Campanha da Fraternidade que se realiza todos os anos em período da Quaresma. Neste ano, “Fraternidade e Vida: compromisso e dom” é o tema da campanha e articula em todas as nossas comunidades eclesiais a atitude penitencial de “ser e fazer comunhão”. À luz da palavra de Deus, nós interiorizamos o tempo quaresmal nos três verbos de ação: Ver, sentir compaixão e cuidar (LUCAS 10,33-34), e nós nos despertamos sob os três olhares – olhar amoroso, olhar cuidadoso, olhar esperançoso. A solidariedade e fraternidade assumem a responsabilidade compartilhada pelo bem Comum. O gesto do bom samaritano de aproximar-se e cuidar das feridas abertas com amor e esperança transforma o individualismo em entendimento e acolhida. A essência samaritana é uma descoberta em nossas vidas, ela nos motiva em nossas relações de mútuo cuidado entre as pessoas, na família, na comunidade, na sociedade e no planeta, casa comum.

     Por ocasião do Seminário Regional para a Vida Religiosa Consagrada, a partir do tema - “Urgência Formativa frente aos abusos de poder, de consciência e sexual na Igreja”- o bispo auxiliar de Belo Horizonte, Dom Vicente Ferreira faz um apelo à conversão em nossa vida religiosa consagrada. Fazer uma revisão do abuso evangelho quando deixamos as periferias para ficar nos centros das cidades ou acomodados no mesmo ambiente por muitos anos sem arriscar de viver o evangelho da itinerância. O objetivo do seminário é oportunizar um espaço de reflexão e seguir aprofundando o tema sobre os abusos e o sofrimento das vítimas, inclusive, no processo formativo. Todo abuso do poder que desrespeita a dignidade do outro deve nos comprometer à denúncia, sem exceção. A nossa tarefa, aqui e agora, em sintonia com a Igreja e em comunhão com o Papa Francisco nos põe em marcha diante da realidade e urgência desse tema e nos inspira a decisão conjunta de eliminação desse mal presente em nossas vidas. 

     Enfim, há muitos modos de compreensão e acolhimento da questão ambiental na experiência comum da vida cotidiana e seus efeitos local e global. A advertência à escuta dos clamores da terra ecoa em nós um núcleo de ação inseparável. “Paz, Justiça e Conservação da criação são três questões absolutamente ligadas e que não se podem se separar” (LS 92). Com toda a reflexão da ecologia integral, abrimos nossas mãos e nos abraçamos mesmo em tempo de penúria para um movimento de fraternidade, anúncio e testemunho. A carta Laudato Si escrita pelo Papa Francisco vem como um sopro do Espírito Santo, para que nós, povo de Deus, nos coloquemos juntos em caminhada no agir em prol da nossa casa comum. Momento de esperança por uma igreja em saída e missionária ao encontro dos clamores da mãe terra e dos que estão às margens, descartados e explorados. O incentivo é sempre deixar a zona de conforto para nos lançar em novas perspectivas e provocar as mudanças que se fizerem necessárias. Possamos ser e viver a esperança do verbo Esperançar[4] que significa almejar, sonhar, agir, buscar. Não apenas esperar! 

Que a nossa presença missionária possa esperançar, olhar e reagir a tudo aquilo que não tem saída. 

Que o cultivo cotidiano à dimensão do bem comum seja projeção do bem social, da dignidade e justiça em todas as nossas ações. 

Que o nosso o coração se converta à escuta amorosa de Deus e haja encorajamento como homens e mulheres novos à luz da Páscoa-Ressurreição. 

Que a ternura do olhar ao outro e o abraço da nossa Terra-Mãe nos ensine a semear, cultivar e cuidar de nossas relações à luz do Evangelho. 

Amém, Axé, Awere, Uai, Ubuntu para você. Aleluia a todo mundo! 

Irmãs Dominicanas - Província do Brasil

[1] Ubuntu como ética africana, humanista e inclusiva - Jean-Bosco Kakozi Kashindi Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/ideias/254cadernosihuideias.pdf. Acesso em 15 de março 2020. 

[2] Canção inspirada na encíclica Laudato Si do Papa Francisco. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=PLsAtfUGcHU. 

[3] Gaudium et Spes, 1: “ As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história”. 

[4] Mário Sérgio Cortella é teólogo, filósofo e professor .

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