Setembro é o mês da
Bíblia para várias igrejas cristãs. O Evangelho de Marcos (Mc) foi escolhido
para ser o texto bíblico do mês da Bíblia de 2012. Eis, abaixo, algumas pistas
para ajudar na interpretação de Mc.
Evangelho de Marcos: seguir Jesus a partir dos
injustiçados.
Gilvander
Luís Moreira[1]
Mc não foi escrito
enquanto Jesus de Nazaré convivia com o povo, consolando os aflitos e afligindo
os consolados. Mc foi escrito por volta dos anos 70 do 1º século da era cristã.
Logo, trata-se de teologia da história e não de uma crônica jornalística da
práxis e do ensinamento do Galileu. Provavelmente, Mc foi escrito fora da
Palestina, na periferia da capital do Império Romano, onde os apóstolos Paulo e
Pedro tinham, segundo a tradição, sido martirizados. Mc objetiva guiar as
primeiras comunidades cristãs que enfrentavam - e, hoje, as pessoas cristãs que
enfrentam -, muitos problemas e desafios.
Mc inicia dizendo:
“Princípio do Evangelho de Jesus
Cristo, Filho de Deus.” (Mc 1,1). Assim, Marcos é o criador do gênero
Evangelho. Mc é único dos quatro evangelhos da Bíblia que usa a palavra
Evangelho[2] (eu + angelos, em grego), que quer dizer
boa notícia aos empobrecidos e, conseqüentemente, péssima notícia para os
opressores dos pobres (cf. Lc 4,18-19).
Organizado seguindo uma
seqüência cronológica, Mc, com 16 capítulos, é o menor Evangelho da Bíblia. Mc
é uma das fontes para a elaboração dos outros três evangelhos: Mt, Lc e Jo. Encontramos também em Mc algumas ausências. Não há narrativa
da genealogia, nem das infâncias de João Batista e de Jesus, nem do Pai Nosso e
nem das Bem aventuranças. A narrativa das tentações está resumida (Mc 1,13).
O autor de Mc faz questão de dizer: “Depois
que João (Batista) foi preso, veio Jesus para a Galileia proclamando o
Evangelho de Deus...” (Mc 1,14). Quer dizer, foi um acontecimento político
- repressão ao profeta João Batista, líder de um movimento popular-religioso -,
feito pelo governador Herodes, que fez Jesus reconhecer que a sua hora tinha
chegado, que era preciso iniciar sua missão pública. Mc mostra também Jesus
travando conflito com autoridades religiosas (Mc 2,1-3,6), mas em Mc o grande
inimigo de Jesus e do seu Projeto é o poder político. Conseqüência: somos
discípulos/as de um prisioneiro político. Impossível ser pessoa cristã sem se
comprometer com a luta por justiça, com uma Política que constrói uma sociedade
justa, solidária, ecumênica, com direitos humanos e sustentabilidade ambiental.
Em Mc, os empobrecidos, excluídos, doentes, endemoninhados, cegos,
surdos-mudos... todos os injustiçados se sentem atraídos por Jesus. Vão ao encontro
dele, revelam grandeza de espírito, audácia e passam a seguir o mestre Galileu
tornando-se seus discípulos/as. Por outro lado, em Mc, os apóstolos e
discípulos revelam ter uma grande dificuldade de entender o projeto de Jesus.
São “duros e ignorantes”. Isso aparece nas repreensões a Pedro (Mc
8,32s), na discussão dos discípulos sobre a hierarquia de cada um deles na
hierarquia apostólica (Mc 9,32ss), no pedido dos filhos de Zebedeu solicitando
para si os primeiros lugares (Mc 10,35-45). Enfim,
em Mc os/as autênticos/as discípulas/os são os oprimidos e injustiçados.
Havia na época de Marcos quem entendesse milagre como algo
extraordinário e para além da natureza, feitos a serem realizados apenas por
quem tivesse um poder para além do humano. Para combater essa ideia, o autor de
Mc vai mostrar Jesus fazendo milagres como exercício de solidariedade, de
cuidado, de ação misericordiosa. Em Mc os milagres têm também a força de
desestabilizar o status quo
religioso, porque Jesus, sem ser sacerdote, sendo leigo e sem cobrar nada, curava
as pessoas, dentro de um processo de solidariedade gratuita. Isso minava a
privatização da saúde que, sob pagamento, estava nas mãos dos sacerdotes, do
sinédrio.
Marcos vai, ao longo do Evangelho, demonstrar que Jesus é o Cristo, o
messias filho de Deus, mas não o messias do poder, nem do prestígio, nem da
pureza, nem da Lei, nem da religião burguesa, mas o messias servo sofredor. Por
isso Marcos faz Theologia crucis. Jesus
é aquele que por amor extremado à humanidade se doa até ao martírio.
Marcos concebeu seu evangelho a partir da paixão.
Isto se comprova pelas repetidas condenações à morte sentenciadas pela hierarquia
judaica. A primeira decisão se executar Jesus foi tomada no final do primeiro
confronto com adversários na Galileia (Mc 3,6); as seguintes se escalonam até o
relato da paixão (Mc 11,18; 12,12; 14,1s.55). O caminho de Jesus em Mc é
acompanhado pela sombra da morte.
Em Mc há um arco de tensão. Jesus é filho de Deus do início ao fim do
evangelho (Mc 1,1.11; 15,39), mas como servo que ama gratuitamente a todos a
partir dos injustiçados. No meio do evangelho aparecem ameaças de morte – e de
ressurreição - para Jesus (Mc 8,31; 9,31, 10,33s). Assim, Jesus percebe que seu
caminho passará pelo martírio. Livremente o Galileu enfrenta as injustiças e se
doa integralmente.
Mc é o evangelho do Movimento
e do Caminho. Jesus e seu movimento
popular-religioso estão sempre se movimentando, sempre em missão, sempre a
Caminho. É o Profeta que prepara o caminho
(Mc 1,2) e clama para o povo preparar o caminho
(Mc 1,3). Jesus está quase sempre caminhando
(Mc 1,16). Vai com os discípulos “a
caminho do mar” (Mc 3,7) e também descreve o que acontece pelo caminho (Mc 8,3.27; 9,33-34; 10,32.52).
Da mesma forma, quem aceita Jesus deve segui-lo e empunhar seu projeto, que é
de libertação integral. Em Mc o verbo “seguir” aparece dez vezes.[3]
As primeiras pessoas cristãs pertenciam ao Caminho (At 9,2; 18,25-26; 19,9-23).
Em Mc, o Projeto de Jesus e seu Movimento não são uma “boa notícia para
agradar gregos e troianos”, opressores e oprimidos. Trata-se de boa notícia
para todos, mas a partir dos empobrecidos. Mc faz opção pelos pobres. Por isso,
em Mc são freqüentes os contrastes e conflitos. Ou se está do lado de Jesus ou
contra Ele. O verbo “discutir”[4]
aparece várias vezes em Mc.
Em Mc estão em seguida dois acontecimentos dialéticos: o banquete da
morte (festa de Herodes, cf. Mc 6,14-29)
e o banquete da vida (partilha dos pães, cf. Mc 6,30-44). O banquete da morte
acontece à custa do banquete da vida.
O Herodes de Mc 6,14-29 é o Herodes Antipas, filho menor de
Herodes o Grande e de Maltace, governou sobre a Galileia de 4 a .C. a 39 da Era Cristã. Ele
aparece na morte de Jesus (Lc 23,7). Mandou matar João Batista (Mc 6,14-29).
Segundo Flávio Josefo, as regiões de Pereia e Galileia davam à corte de Herodes
cerca de 200 talentos[5]
por ano.[6] Mc
diz que a causa da prisão de João teria sido uma denúncia de “imoralidade”, mas
Flávio Josefo dá outra versão: Herodes teria mandado matar João Batista porque
a reputação dele era tão grande que os seus conselhos eram seguidos de maneira
geral, e isso poderia levar o povo à rebelião e à desobediência civil, à insurreição, e por isso, considerou
melhor tirá-lo do caminho a tempo do que correr perigo, no caso de virada das
coisas. E então, quando já seria tarde demais, quando teria de se arrepender.
Mc denuncia esse
banquete da morte e propõe o banquete da vida, que passa pela partilha do pão,
pela organização, fraternidade e solidariedade.
Um oficial militar do
império romano, em Mc 15,39, exclama ao contemplar Jesus crucificado: “Verdadeiramente este homem é o Filho de Deus.”
Ou seja, para ser discípulo/a autêntico/a é preciso contemplar os crucificados
da história, se comover com a dor deles e abraçar suas causas de libertação.
Isso implica por a vida em risco.
Em Mc 16 se anuncia aos
que procuram no cemitério: “Jesus está
vivo, ressuscitado. Voltem para a Galileia, pois lá vocês farão a experiência
de que Jesus está vivo.” Hoje, há milhões de pessoas em muitas Galileias
testemunhando que Jesus e seu Evangelho estão vivos em tantos que se doam e
combatem lutando por justiça e paz. Assim, o Evangelho de Marcos nos convida
para seguir Jesus e seu Projeto a partir dos injustiçados.
Enfim, bom mês da
Bíblia para você e sua Comunidade na companhia do Evangelho de Marcos.
Belo Horizonte, MG,
Brasil, 03 de setembro de 2012.
[1] Frei e
padre carmelita, mestre em
Exegese Bíblica ; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina, em Minas Gerais , Brasil;
e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br
– www.gilvander.org.br – www.twitter.com/gilvanderluis -
facebook: Gilvander Moreira
[2] A palavra “Evangelho” aparece sete vezes em Mc (Mc
1,1.14.15; 8,35; 10,29; 13,10; 14,9).
[3] Cf. Mc 1,17.18.20; 2,14.15; 8,34; 10,21.28.32.52...
[4] Cf. Mc 1,27; 8,11;
9,10; 14,16; 12,28.
[5] 01
talento = 26 Kg
e 436 gramas .
Veja Mt 18,24. Segundo cálculos de alguns estudiosos, um trabalhador como
aquele da parábola de Mt 20,1-15, que recebeu um denário por um dia de
trabalho, levaria mais de quinze anos para conseguir juntar um único talento!
[6]
JOSEFO, Flávio. Ant. XVIII, 11, 4, n. 318; cf. Guerra I, 33, 8, nn. 668-669.
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