"Precisamos
mais do que nunca da vitalidade dos católicos de outros continentes, onde as
comunidades muitas vezes são mais jovens e cheias de vitalidade. Eu espero
vivamente que um papa latino-americano dê confiança aos católicos daquelas
terras, para que encontrem a força para viver sua fé com alegria e
criatividade."
Timothy Radcliffe foi Mestre Geral da Ordem Dominicana de 1992 a 2001. É doutor honoris causa em teologia pela Universidade de
Oxford e renomado estudioso da Igreja e da sociedade contemporânea.
A reportagem é de Maria Teresa Pontara Pederiva, publicada no blog da Editora Queriniana, 24-05-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
O que o senhor pensa desta nova estação da Igreja? O novo Papa Francisco
deu alguns sinais, mas mais uma vez os conservadores insistem no fato de que
nada mudou, os progressistas já o veem dando passos até muito para a frente...
É um pouco sempre a mesma história que se repete ou não?
Naturalmente, cada
um examina cada palavra do novo papa para ver se é do "nosso lado" ou
não. Isso é profundamente injusto. Francisco precisa de tempo
para descobrir o caminho à sua frente, ouvindo o parecer dos seus conselheiros
e confiando na oração. Ele vai descobrir lentamente nos meses quão grande é a
necessidade de uma mudança.
Espero vivamente
que seja um momento de mudança radical. O Papa Francisco sempre enfatiza
que ele é acima de tudo o bispo de Roma e desde a primeira noite, na sacada de São Pedro, ele logo definiu o seu antecessor de bispo
emérito. Eu acho que ele está tentando se afastar da ideia que governou a
Igreja durante séculos de que o papado é uma espécie de monarquia. Ele está
tentando posicionar o novo papado dentro do colégio universal dos bispos. Ele
quer uma Igreja – pelo menos esta é a minha opinião – que seja mais dialógica
entre os seus componentes.
Mas não devemos
exagerar ao enfatizar as diferenças entre o Papa Francisco e o seu
antecessor, Bento XVI. O Papa Bento XVI acreditava firmemente na importância do diálogo e
na necessidade de relações de reciprocidade dentro da Igreja. Ele falou muitas
vezes de uma Igreja que deveria refletir o amor da Trindade, que é igual e
recíproco entre os seus membros. Algumas escolhas que o Papa Francisco está fazendo poderiam ser justamente a
implementação da visão teológica do seu antecessor. É como se considerássemos
que cada um tem o seu próprio dom: um para formular a visão teológica, outro
para encarná-la.
O senhor viveu em Roma por nove anos (1992-2001) como mestre da Ordem
dos Pregadores e conhece bem o centro da Igreja, mas também é de origem
inglesa, vive em Oxford e também conhece muito bem o mundo: o que um papa
latino-americano pode significar para a Igreja?
Das minhas viagens
em todo o mundo, eu aprendi que a Igreja é a instituição mais global do mundo.
E assim, para mim, é perfeitamente natural ter um papa que provém da América Latina. O mestre anterior da Ordem Dominicana vinha da Argentina, e o atual é o
primeiro da história a ser de origem africana. Certamente isso poderia ser uma
surpresa para os europeus que não conhecem a Igreja tão bem.
Mas estou
convencido de que a eleição do Papa Francisco realmente irá
desafiar uma visão eurocêntrica da Igreja. E esse é um fato formidável.
Precisamos mais do que nunca da vitalidade dos católicos de outros continentes,
onde as comunidades muitas vezes são mais jovens e cheias de vitalidade. A
Igreja Católica na Inglaterra, por exemplo,
obteve novas forças dos católicos provenientes da Polônia e da Nigéria. Eles são uma
bênção para nós.
Mas espero que a
eleição desse papa tenha uma consequência positiva também na América Latina, onde vive hoje o maior número de católicos.
Muitas vezes, a Igreja foi ameaçada pelo crescimento das Igrejas pentecostais,
que atacam o catolicismo como seitas, pois se baseiam muito em uma forte
experiência religiosa. No entanto, muitos convertidos ao movimento pentecostal
não duram muito tempo e muitas vezes acabam renunciando totalmente a uma
escolha religiosa depois de poucos anos.
E assim acontece
que a conversão a uma Igreja pentecostal representa muitas vezes o primeiro
passo para a perda total da fé. Portanto, eu espero vivamente que um papa
latino-americano dê confiança aos católicos daquelas terras, para que encontrem
a força para viver sua fé com alegria e criatividade.
O rabino-chefe, Saks, disse que a Europa está morta, no sentido de que
ela não é mais o centro da cultura e da religião no mundo. O senhor acha que os
europeus estão conscientes da perda de centralidade das nações europeias? Que
papel as populações europeias e cristãs do mundo deveriam adotar? Não nos
esqueçamos de que os europeus têm uma longa história e têm familiaridade com as
guerras religiosas, o que poderia nos ensinar a não repetir os erros...
Eu conheço e admiro
o rabino-chefe, que é um amigo. Mas se ele realmente disse que a Europa está morta, então eu não concordo. É verdade:
somos afetados por uma crise econômica e estamos assistindo à ascensão de
outras potências econômicas, Brasil, Índia e China (Bric), mas isso não significa que estamos mortos de fato!
A Europa ainda é o lugar de encontro de culturas muito diferentes.
Nesta área
relativamente pequena do mundo, dispõe-se de uma extraordinária diversidade de
culturas, das ricas tradições latinas da Itália e da Espanha, herdeiros da cultura romana, às tradições
germânicas, com a sua música e filosofia, às culturas celtas, com sua
espiritualidade e arte, às culturas escandinavas, com as suas antigas
mitologias e as suas tradições de extrema tolerância. E também a cultura
britânica, que eu diria que é maravilhosamente diversificada!
Os Estados Unidos, obviamente, ainda são a superpotência dominante.
É difícil dizer se isso vai continuar no futuro, como alguns preveem, ou vai
diminuir, como outros pensam. Mas a Europa certamente tem muito a dar,
justamente porque é um lugar de encontro de tantas culturas. As nossas cidades
estão cheias de pessoas provenientes de todo o mundo, até mesmo da China. A metade das pessoas que estudam para o seu
doutorado em matemática em Oxford provêm da China!
E assim, mesmo que
talvez tenhamos perdido o primado do poder econômico, ainda temos um papel
vital no fato de ajudar as culturas a se compreenderem. Isso também pode
enriquecer o cristianismo, porque Cristo é aquele que reúne toda a humanidade
em si mesmo e no qual "não há mais judeu nem grego, não há escravo nem
livre, não há homem nem mulher". Aprendemos assim tanto sobre a tolerância
e a convivência recíprocas que devemos ser capazes de ensiná-las aos outros.
Além disso, como o Papa Bento XVI explicou em várias ocasiões tão bem, temos uma
rica tradição filosófica que penetrou profundamente no cristianismo e ele o fez
desde o início. A Igreja é herdeira de duas grandes tradições, a fé judaica e a
filosofia grega. Eu espero que os cristãos europeus possam compartilhar essa
riqueza filosófica com pessoas que vivem no nosso planeta cada vez menor e se
comprometam a compreender os desafios do futuro e o que significa ser humano.
Em 2017, ocorre o 500º aniversário da Reforma
de Lutero. Nos últimos meses, falou-se da hipótese de admissão de erros de
ambas as partes, mas as dificuldades a serem superadas serão enormes. O senhor
considera que algo deva ser feito para testemunhar a unidade dos cristãos?
Essa é uma
oportunidade maravilhosa para trabalhar pela unidade de todos os cristãos. Para
nós, como católicos, essa deve ser considerada uma prioridade especial. O
catolicismo dá uma grande importância à unidade da Igreja como sinal e sacramento
de unidade de toda a humanidade em Cristo no Reino, como está expressado na Lumen Gentium.
Já fizemos muito
admitindo os erros de ambas as partes e para redescobrir a nossa unidade
fundamental da fé. Luteranos e católicos chegaram ao acordo de que não existem
divisões de fato sobre a questão da salvação somente pela fé. O grande desafio
para nós será, então, o de entender o sentido de unidade. Para os católicos,
precisamos encontrar um modo para que a figura do papa possa servir à unidade
de todos os cristãos, em vez de ser visto como um obstáculo.
O Papa João Paulo II era profundamente consciente desse desafio e nos
pediu para refletir sobre ele. O papado não pode nos levar juntos para a
unidade se for visto como uma espécie de monarquia. Como eu disse antes, eu
acredito que o Papa Francisco está tentando nos
levar para além da concepção de uma monarquia papal. E isso poderia realmente
se tornar um sinal de esperança ecumênica pela unidade dos cristãos.
Por outro lado, eu
penso que as outras Igrejas cristãs precisam entender a importância da unidade
doutrinal. Em muitas Igrejas ainda vigora o pressuposto equivocado segundo o
qual doutrinas e dogmas são arrogantes e intolerantes. Ao invés, precisamos
mostrar a beleza da nossa doutrina, como libertadora das nossas mentes sempre
para a busca contínua de uma maior compreensão do mistério de Deus e da
salvação.
Se o senhor tivesse que redigir a agenda do papa sobre as ações a serem
tomadas para revitalizar a Igreja, o que o senhor colocaria nos três primeiros
lugares?
Acho que é preciso
deslocar o centro de gravidade da Igreja para mais perto das Igrejas locais. Os
bispos precisam ver reconhecida a confiança para tomar decisões sem se sentirem
sempre observados de cima por parte de Roma.
Em segundo lugar,
na Igreja antiga, havia uma sensação muito forte de que o bispo devia vir da
Igreja local: escolhido pela Igreja local e aceito por ela. Com efeito, por
muitos séculos, seria totalmente impensável que os bispos pudessem ser
simplesmente nomeados por Roma sem o
consentimento da Igreja local. Certamente, eu sei bem que o abandono dessa
tradição, em certa medida, foi causado pela luta da Igreja para manter a sua
liberdade diante do desejo de reis e imperadores e, nas últimas décadas do
século passado, dos governos comunistas, todos com a intenção de obter o
controle sobre a Igreja e de privá-la da sua liberdade. Uma certa centralização
era necessária para que a Igreja permanecesse livre.
Mas agora eu
acredito justamente que chegou o momento de voltar para o papel determinante da
Igreja local na escolha do próprio bispo. Eu também me pergunto se é bom para
os bispos ser transferidos de uma diocese para a outra. Eles usam um anel que é
um sinal do seu ser "casados" com a diocese, mas muitas vezes são separados
das suas dioceses originais e casados com outras dioceses. Se eles soubessem,
ao invés, que permaneceriam em suas dioceses, então poderiam prestar toda a sua
atenção. É realmente estranho que se permita que os bispos se divorciem das
suas dioceses, mas não se permita às pessoas unidas em matrimônio!
E, em terceiro
lugar, precisamos recuperar a forma de governo que era típica dos primeiros
séculos do catolicismo, que era uma forma tipicamente sinodal. Por séculos, as
decisões importantes foram tomadas dentro de sínodos. Sim, devemos redescobrir
uma gestão sinodal da Igreja.
O que poderia trazer uma maior colegialidade dentro da Igreja? Entre
papa e bispos, mas também com os leigos, que também têm o direito de se
expressar como batizados e filhos de Deus...
A Igreja não é uma
monarquia e não é uma democracia. É a comunidade daqueles que são convocados em
comunidade pela Palavra do Senhor. Precisamos identificar modalidades de escuta
comunitária da Palavra de Deus: ouvindo o Senhor e ouvindo reciprocamente uns aos
outros. O beato John Henry Newman,
um dos teólogos preferidos do Papa Bento XVI, falou das várias
autoridades na Igreja, a da hierarquia, a da razão e da experiência de Deus na
oração. Tudo isso nos guia quando ouvimos juntos a Palavra do Senhor. Portanto,
precisamos reviver a antiga tradição dos sínodos, em que todo o povo de Deus se
reunia para ouvir uns aos outros, assim como se buscava juntos discernir a
vontade de Deus
Se o senhor pudesse formular um pedido a cada uma dessas pessoas, o que
o senhor diria: ao papa, aos bispos, aos religiosos e religiosas, aos
sacerdotes, aos teólogos e teólogas, aos leigos e leigas (famílias, mulheres,
jovens...)?
Eu certamente não
pretendo fazer pedidos, mas só expressar a minha esperança. O Papa Francisco é um homem maravilhoso, e todos nós fomos
abençoados pela sua eleição. A minha esperança é que ele continue assim como
começou e que mantenha viva a sua alegria.
A minha esperança é
que os bispos ouçam o Espírito Santo, que se derrama sobre todo o povo de Deus.
Os bispos são ordenados para ensinar, e um bom ensinamento sempre envolve uma
escuta profunda, tanto com relação a Deus, quanto com o seu povo.
Para os padres, a
minha esperança é que se deem conta dia após dia de serem ministros da vida
plena de Cristo, e que, portanto, precisamos nos deixar tocar pelos dramas da
vida cotidiana das pessoas. Devemos, como disse o papa, sentir o cheiro das
nossas ovelhas.
A minha esperança é
que os teólogos e teólogas permaneçam sempre abertos com relação àqueles com os
quais não compartilham as opiniões, mostrando a grandeza dos seus corações e
das suas mentes. Não há verdade sem caridade, nem caridade sem verdade.
A minha esperança é
que os leigos e leigas cresçam na consciência da beleza da sua vocação de
batizados e batizadas. Não há vocação maior. É por isso que eu escrevi o meu
último livro, Prendi il largo! [Avancem para águas mais profundas].
O que o senhor acha que deveria ser feito para relançar a Igreja e o
cristianismo em uma época de pluralismo cultural e religioso que quase se
configura como um supermercado de crenças?
No centro da nossa
fé, não há uma escolha de consumidores, mas sim a surpreendente descoberta de
que fomos "escolhidos". São João escreve: "Nisto consiste o
amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele que nos amou e nos enviou o
seu Filho como vítima expiatória por nossos pecados" (1Jo 4, 10).
O papel dos pobres, a Igreja dos pobres são palavras do papa, mas também
nada mais são do que o ensinamento do Evangelho e de todo o magistério. Como é
possível que agora tudo pareça tão novo e empolgante?
Pela primeira vez
em décadas, estamos diante da autêntica pobreza na Europa. Na Grã-Bretanha, um país
economicamente bom, meio milhão de pessoas têm que contar em bancos solidários
de alimentos para sobreviver. E mesmo assim se assiste a uma crescente
tendência a desprezar os pobres. Diante da efetiva escassez de postos de trabalho,
a opinião pública tem a impressão de que não é culpa deles, que não querem
trabalhar ou que são preguiçosos.
E assim a Igreja
tem a extraordinária missão de abrir os olhos de todos sobre a dignidade dos
pobres, que são a nossa carne e o nosso sangue, e abrir os nossos ouvidos para
ouvir o que eles dizem e como vivem. Caso contrário, a sociedade europeia
poderia realmente acabar se despedaçando, e as consequências seriam terríveis.
A Igreja muitas vezes é vista como uma organização que promove batalhas
morais ou políticas: como restituir ao testemunho evangélico o fato de ser
fermento na sociedade? As pessoas se perguntam se é tão importante combater o
casamento gay: se alguém não o aprova, que não o peça... parece tão simples!
A Igreja deve
manter uma visão moral específica, mas precisa encontrar um modo de não parecer
para a maioria que está na defensiva contra a modernidade e, de certo modo,
"excludente" a toda modernidade para o ser humano. Isso é difícil de
se alcançar. Só se formos vistos fazendo amizade com as pessoas, estando
abertos a tudo o que elas vivem, as suas esperanças e as suas lutas, seremos
capazes de encontrar uma palavra de novidade e seremos capazes de falar de Deus
às pessoas.
Por exemplo,
podemos falar de homossexualidade e de casamento gay só na medida em que formos
vistos como acolhedores com relação às pessoas homossexuais, ouvindo e
apreciando a sua profunda amizade. Só em um momento posterior, teremos assim a
oportunidade de ir em busca de palavras que, ao mesmo tempo, sejam fiéis ao
Evangelho e autênticas para a vida das pessoas, que então as sentirão como
próprias.