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segunda-feira, 31 de março de 2014

50 anos do golpe militar - fantasmas ainda assombram o Brasil

Na madrugada de 22 de setembro de 1985, seis meses depois de iniciado o processo de redemocratização do país, o economista Gustavo Buarque Schiller, de 35 anos, abriu a janela do apartamento, em Copacabana, no Rio, e voou para a morte. Formado também em sociologia e filosofia, trabalhava como pesquisador do Estaleiro Mauá e deixou órfã uma filhinha com menos de dois anos.

Seis anos antes, o frei dominicano Tito de Alencar se enforcava com uma corda jogada sobre o caibro de um galpão em Lyon, na França, assombrado pela imagem do delegado Sérgio Paranhos Fleury, que o havia torturado pessoalmente em São Paulo.
Divulgação/Memorial Frei Tito
Assombrado pela imagem de seu torturador, Frei Tito se matou após deixar a prisão
Gustavo, que havia participado do roubo de US$ 2,6 milhões do cofre do ex-governador paulista Ademar de Barros, e Tito, torturado para abrir informações sobre o líder da ALN, Carlos Marighella, não foram os únicos a escancarar a herança mais tenebrosa dos anos de chumbo.
Há ainda uma legião de ativistas que, passados 46 dos anos mais violentos da ditadura brasileira, entre 1969 e 1974, não conseguiu superar os traumas psicológicos causados pelos horrores do cárcere e de sua face mais cruel: a tortura, as execuções sumárias de prisioneiros dominados, sem chances de reação e, para dar requinte à barbárie, os desaparecimentos forçados – crimes imprescritíveis no mundo democrático.
Transtornados pelos pesadelos, assombrados e deprimidos pelas lembranças dos algozes e da humilhação, muitos outros ex-militantes, mesmo depois que a ditadura terminou, também não aguentaram os traumas e se mataram. É difícil chegar a um consenso sobre o número de suicídios ocorridos depois da Anistia, em 1979, porque muitos casos são atribuídos a morte natural ou acidental, mas certamente passa de uma dezena. Nos centros de detenção e tortura, dezenas de homens e mulheres que figuram numa lista de desaparecidos cujo número varia ente 150 e 180 militantes simplesmente não resistiram e sucumbiram sem vida nas mãos dos torturadores.
Cadeiras vazias
A lista de pessoas comprovadamente mortas nessas condições é enorme e, em alguns casos, envolve vários membros de uma mesma família. São os Grabois, os Petit, os Seixas, os Corrêa, os Pereira, os Cassemiro, os Carvalho e tantos outros sobrenomes de rebeldes que resistiram à ditadura no campo e nas cidades. O que choca não são as mortes em combate, mas a barbárie pelo lado mais forte do conflito.
Em muitas casas de militantes desaparecidos, uma cadeira vazia em volta da mesa de refeições, reservada para alguém que nunca chega, funde uma imagem de dor e esperança. A maioria das mães que entraram na Justiça para exigir a entrega dos corpos morreu sem saber o destino dos filhos. Só nos registros de sentenças judiciais são 34 casos listados.
Nas mais de 170 comissões da verdade espalhadas pelo País, militantes que sofreram o peso da ditadura – mas seguem em frente se livrando dos fantasmas através das denúncias – se misturam aos que, ainda frágeis e transtornados, entram em crise de choro na hora de revolver o passado. É como feridas que não cicatrizam.
No caso da Guerrilha do Araguaia, muitos guerrilheiros foram decapitados por índios ou mateiros que, atraídos pela recompensa oferecida, de quando em quando apareciam nas bases militares com cabeças. Lá estima-se que perto de 80 pessoas, entre camponeses recrutados para a guerrilha e quadros do PCdoB, ainda estão desaparecidos. Até agora só foram localizados os corpos de dois militantes do PCdoB, Maria Lúcia Petit e Bérgson Gurjão Farias. Restam 58 e vários camponeses cuja identificação – oito delas já confirmadas – só foi possível recentemente. Dados da Pastoral da Terra apontam que ainda há desaparecidos no campo. No período militar 1.280 camponeses foram mortos, boa parte no Sul do Pará, como reflexo direto ou indireto do conflito na área rural.
O drama dos familiares dos desaparecidos é “cruel, desumano e uma fonte permanente de sofrimento e angústia”, escrevem os juízes da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que condenaram o Brasil. Para a entidade, os desaparecimentos, a falta de esclarecimento e de punição dos violadores representa um bloqueio à transição política e um entrave à reconciliação do Estado e de suas Forças Armadas com a sociedade civil.
Segundo a Corte, as hostilidades recíprocas, que os militares chamam de revanchismo, só cessarão quando o Brasil cicatrizar as feridas dos anos de chumbo removendo os obstáculos jurídicos para apurar os desaparecimentos, localizar os corpos, punir os responsáveis, reconhecer a brutalidade e adotar políticas públicas para reparar os erros e mudar a cultura das Forças Armadas com cursos de direitos humanos em toda a escala hierárquica.
Para se vacinar contra o autoritarismo e as violências em nome do Estado, a CIDH aponta a necessidade de tipificação do crime de desaparecimento na ordem jurídica. A entidade considera inaceitável a concessão de anistia a quem cometeu crimes contra a humanidade e fez severas críticas ao Supremo Tribunal Federal, que sancionou o desejo dos militares ao refutar uma revisão à Lei de 1979.
Três décadas depois do fim do regime, os traumas estão tão presentes que o Ministério da Justiça, seguindo recomendação da CIDH, criou um programa – as Clínicas do Testemunho – para levar atendimento psiquiátrico, psicológico e psicanalítico aos sobreviventes e a familiares vítimas de um conflito. Os custos iniciais são estimados em R$ 2,6 milhões.
“Teve gente que sobreviveu à tortura, mas não às prisões”, afirma o ex-deputado Gilney Viana, ativista de direitos humanos, ao esclarecer que para muitos militantes a cadeia foi um processo contínuo e prolongado da tortura.
Caça às bruxas
Até sufocar a subversão, os órgãos de repressão prenderam e torturam cerca de 20 mil pessoas, das quais 437 sucumbiram diante do excesso de violência – choque elétrico, espancamentos, afogamentos ou simplesmente foram executados a sangue frio depois de dominados. A linha dura militar se comportou como um poder paralelo na ofensiva ditatorial que, entre 1969 e 1974, fulminou os grupos armados, fechou o Congresso, censurou completamente a imprensa, suprimiu todos os direitos da cidadania e proibiu até o habeas corpus.
As comissões que investigam os crimes da ditadura estimam que, no total, mais de 100 mil pessoas foram detidas e perto de 10 mil, voluntária ou involuntariamente, tiveram de deixar o País, como fez o então professor de sociologia Fernando Henrique Cardoso. Os números oficiais mostram que entre os civis 7.697 foram formalmente acusados na Justiça Militar, 10.034 foram indiciados em inquérito, quatro receberam a pena de morte, 130 banidos e 4.862 adversários políticos tiveram seus mandatos cassados.
Nas Forças Armadas, 6.592 militares que se opuseram ao golpe acabaram expulsos e muitos deles – como o capitão Carlos Lamarca ou Osvaldo Orlando da Costa, o carismático guerrilheiro do Araguaia que havia alcançado a patente de primeiro tenente do Exército no Rio – foram “exemplarmente” executados. Os líderes que não fugiram do País ou acabaram sendo trocados por autoridades estrangeiras sequestradas, como Carlos Marighella, foram caçados e executados.
Violência contínua
Sustentada pelo maior e mais violento aparato de repressão instalado no período republicano, a ditadura usou a barbárie como método de interrogatório e começou a cair quando o mundo tomou conhecimento de que o país do “milagre econômico” – famoso pelo futebol que conquistava mais Copas que qualquer outra nação – torturava e matava nos porões prisioneiros indefesos.
Contrária à tese do “golpe dentro do golpe”, que normalmente trata a ditadura por períodos distintos, a historiadora Heloísa Starling sustenta que a tortura foi usada sistematicamente desde que os militares, apoiados por significativa parcela civil, derrubaram o presidente eleito João Goulart, em 1964 e não a partir de 1968, com a instituição do AI-5.
“A tortura como interrogatório foi adotada em 1964 e segue como um padrão constante até 1968”, afirma Heloísa, autora de um levantamento feito em denúncias que apareceram nos jornais da época. No primeiro ano do golpe foram registrados 148 casos. O número cai nos quatro anos seguintes – 35 registros em 1965, 66 em 1966, 50 em 1967 e 35 em 1968 – para explodir em 1969, com 1027 casos, e nos anos seguintes, até 1974.
Os dados levantados pela historiadora mostram que nos dois primeiros anos do regime militar havia pelo menos 36 centros de detenção e tortura instalados em delegacias, estabelecimentos militares e até em universidades. O Rio de Janeiro é o estado campeão, com 16 centros. No período em que antecedeu o AI-5, Heloísa encontrou registros de técnicas de tortura como afogamentos, choque elétrico, banho chinês, churrasquinho, geladeira, telefone, soro da verdade e pressão psicológica, que seriam ampliadas a partir de 1968. A violência, segundo ela, só foi alargada, mas sua matriz é anterior ao golpe de 1964.

fonte: http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2014-03-26/50-anos-do-golpe-fantasmas-da-ditadura-ainda-assombram-o-brasil.html